domingo, julho 30, 2006

 

mudar de vida ....asseio...

Recebi o anuncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada. Ah que manhã é esta, que me disperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura d’ella! Quasi que choro vendo esclarear-se deante de mim, debaixo da minha velha rua estreita, e quando os taipaes da mercearia da esquina já se revelam castanho castanho sujo na luz que se extravasa um pouco, o meu coração tem um alivio de conto de fadas reaes, e começa a conhecer a segurança de se não sentir.

Assim, como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa, não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquelle respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos aceio.

Livro do Desassossego 1923. - Bernardo Soares

Fotos: por um fio invisivel

sexta-feira, julho 28, 2006

 

Rua dos Douradores , em Lisboa

Em sonhos sou egual ao moço de fretes e à costureira. Só me distingue d'elles o saber escrever. Sim é um acto, uma realidade minha que me differença d'elles.
Na alma sou egual.

Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopolitas e (...)

Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores.


O Livro do Desassossego - B. Soares /Fernando Pessoa

Fotos : aqui
Postal - vende-se em Sintra, por informação da t.

quarta-feira, julho 26, 2006

 

Do Cais do Sodré ao Oriente...


Faço a paysagem ter para mim os efeitos da música, envocar-me imagens visuaes – curioso e difficilimo triumpho do êxtase, tão difficil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que as há-de evocar. O meu triumpho máximo no género foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz olhando para o Caes do Sodré nitidamente o vi um pagode chinez com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinez pintado no espaço, sobre o espaço-setim, não sei como, sobre o espaço que perdura a abominável terceira dimensão.

É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a paysagem pintada n’um abano chinês não ter trez dimensões.

Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não a riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.

NÃO PERCA ESTE VIDEO
http://www.visualgui.com/motion/BonjourVietnam.html
Bernardo Soares – O Livro do Desassossego (1930)

terça-feira, julho 25, 2006

 

jardins

É-me agradável receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer coisa orgânica. Nesses dias gosto muito de jardins.

Não sei que cousa estranha existe na substancia intima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando não me sinto bem a mim.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém o emprego publico das flores. Assim , na cidade, regrados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das arvores e das flores não teem senão espaço para o não ter, logar para d’elle não sahir, e a belleza própria sem a vida que pertence a ella.

Nesses dias estou errado. Mas, pelo menos em certo modo, estou feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa, lar, a onde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

12Abril 1930

Livro do Desassossego - B Soares /Fernando Pessoa

Fotos :aqui


segunda-feira, julho 24, 2006

 

O eléctrico chamado PAZ

Para sentir a delicia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de combóios expressos. Basta-me um carro eléctrico e a espantosa faculdade de abstracção que tenho e cultivo .

N'um carro eléctrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e instantânea de analyse, separar a idea de carro da idea de velocidade, separál-as de todo, até serem cousas reaes diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da mera-velocidade delle. E, cançado, se acaso quero o delirio da velocidade enorme, posso transportar a idea para o Puro imitar da velocidade e a meu bom prazer, augmental-a ou diminuil-a, alargal-a para além de todas as velocidades possíveis de todos os vehiculos comboios.

A vida é para nós o que concebemos nella. Para o rustico cujo campo proprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o Cesar cujo império lhe é ainda pouco, esse imperio é um campo. O pobre possue um império; o grande possue um campo. Na verdade, não possuimos mais que as nossas sensações; nellas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida.

O Livro do Desassossego - Bernardo Soares - texto de 27.6.1930, mantendo a escrita original.
Fotos :aqui

Fundamentar a realidade da nossa vida e encontrarmos a PAZ : além

e vermos este video http://www.youtube.com/watch?v=dqCiKiEAYYk e e baixarmos a velocidade para sentirmos a sensação de REFLECTIR.


sábado, julho 22, 2006

 

estio

É estio mas verão. Apetece o campo até a quem não gosta dele.

Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia feliz, pois o sentiria sem pensar n'elle.Concluiria com uma alegria de antecipação o meu trabalho normal - aquele que me é monotonamente annormal todos os dias. Tomaria o carro para Benfica, com amigos combinados. Jantariamos em pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estariamos seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, reconhecida como de ali.
( O Livro do Desassossego -Bernardo Soares -2.7.1932 )

As cerejeiras eram a alegria da serra por altura das ceifas. Raro era o linhar e a horta que a seu tempo não ostentasse a rica vestimenta de rubis. Generosas e abundantes, comiam todos à farta, desde o rapazio aos pardais, que se pelam por elas. Mais bonito em Portugal só as laranjeiras. A rirem-se e oferecerem-se a toda a gente por cima das paredes e das demarcações, não podiam as cerejas deixar de atrair o olho lampeiro do Lêndeas, que imaginou explorá-las a bem da sua cupidez. ...(e) Teve para um ano de balcão... uma mixórdia enjoativa que os labregos, a emborcá-la, a revessarem em ânsias a cama das tripas.

Um tubo de borracha vinha sub-repticio, por detrás dos cascos, com a candonga abominável. E o freguês de rol estava com muita sorte se no cálix entrasse meia dose de bagaceira.

Assim enriquecera o tiborneiro. E sempre a coçar-se, e caspa e lendeas a cairem-lhe como granizo para a gola do casaco, e a dizer mal da porca da vida.

Quando os Lobos Uivam - Aquilino Ribeiro

Todas as fotos - ali e aqui.


sexta-feira, julho 21, 2006

 

Manhã a raiar sobre a cidade

Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra - ou antes, de luz e de menos luz - a manhã desata-se sobre a cidade.
Sinto, ao sentil-a, uma grande esperança. Manhã, primavera,esperança estão ligados em musica pela mesma intenção melódica; estão ligados na alma pela mesma memoria de uma egual intenção. ..reconheço que o que tenho que esperar é que este dia acabe, como todos os dias. A razão tambem vê a aurora.
Esperar? Que tenho eu que espere? O dia não me promette mais que o dia, e eu sei que elle tem decurso e fim. A luz anima-me mas não me melhora pois sahirei de aqui como para aqui vim - mais velho em horas, mais alegre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que ha de morrer.


Lembro-me de repente de quando era creança, e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. Vejo como via, mas por traz dos olhos vejo-me vendo; e só isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de apparecidas.

Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca verei.





Livro do Desassossego - Bernardo Soares , 1932
Fotos: http://por-um-fio-invisivel.blogspot.com/

quinta-feira, julho 20, 2006

 

Coisas de nada


O Caixa aberto deante dos olhos cuja vida sonha com todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório que ofende todo o universo;
Todos têm um chefe de escritório com a piada sempre inoportuna e a alma fora do universo em seu conjunto.


Mas todos os que sonham, ainda que não sonhem em escritórios da Baixa, nem deante da escrita de um armazém de fazenda, todos têm um Caixa deante de si - seja a mulher com quem casaram seja a (ideia) de um futuro que lhe vem por herança, seja o que fôr logo que positivamente seja.

Todos nós , que sonhamos e pensamos , somos ajudantes e guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos, fechamos o balanço e o saldo invisivel é sempre contra nós.



E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada sua.

O Livro do Desassossego - Bernardo Soares
FOTOS : http://por-um-fio-invisivel.blogspot.com/
Nota para a t. : Fiz um esforço para não voltar ao teu blog para não querer ver o que lá tinhas; tentei responder ao teu post; vamos ver o que daqui resulta...

quarta-feira, julho 19, 2006

 

Rua Nova do Almada - Lisboa

Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei nas costas do homem que a descia adeante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no rythmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.


Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nelle a ternura que se sente pela vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de familia que vae para o trabalho, pelo lar humilde e alegre d'elle, pela inocencia de viver sem analysar, pela naturalidade animal d'aquellas costas vestidas.

Ora as costas d'este homem dormem. Todo elle, que caminha adeante de mim com passada egual à minha, dorme. Vae inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a gente é um sonho. Ninguém sabe o que faz. Dormimos a vida inteira, eternas creanças do Destino. Porisso sinto uma ternura informe e immensa por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormente, por todos , por tudo.

Livro do Desassossego - Bernardo Soares

Fotos: http://por-um-fio-invisivel.blogspot.com/

Nota: Há meses atrás fiz um desafio com a Por um Fio, em que publicámos posts de diversos livros de Eça, sem nada combinado previamente. Ela tem fotos maravilhosas e hoje lembrei-me de ilustrar os devaneios de Pessoa , com essas imagens. Qual o meu espanto quando vejo que também ela está a "reeditar" o Desassossego dando-lhe uns tons como só ela sabe!!! Não percam.


terça-feira, julho 18, 2006

 

acção



Ás vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria, sinto uma náusea física que pode ser de me curvar, mas que transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse a simples força de o querer deveras afastar.


Vivemos pela acção, isto é, pela vontade.

Agir, eis a inteligência verdadeira..Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se o não fizerem ali?
O Livro do Desassossego - Bernardo Soares

segunda-feira, julho 17, 2006

 

Seara em foice alheia ...ou Sintra em negativo?

Joaquina e o marido tinham vindo até Lisboa passar uns dias em casa da filha que morava lá para a linha de Sintra. Naquele domingo como era de costume foram à missa, cumprir a sua devoção. Estranharam a igreja, grande e moderna , cheia de luz e com as portas todas abertas por causa do calor, nada como a igreja lá da aldeia, aconchegada, escura e sempre fresca, cheia de santos e altares.
Aqui, havia até gentes de todo o lado, de todas as cores, africanos, timores , portugueses e alguns daquele branco deslavado – deviam ser os tais russos ou ucranianos, desses países de leste
que tanto se falava.


O órgão começou a tocar e ouviam-se cânticos; todos se levantaram. Ah!, nesta igreja o padre entra lá pelo fundo, pela porta principal, como se viesse da rua e atravessa o corredor, levando à frente um cortejo. O padre é um homem novo , usa sandálias e veste calça de ganga. O cabelo cortado rente, esgrouviado, cheio de redemoinhos. Joaquina olhou-o desconfiada. Quando chegou lá ao cimo do altar saudou os fiéis e disse-lhes até para agradecerem a sauna gratuita que tinham ali à disposição. Todos sorriram…Mas o mais interessante veio depois , na hora do sermão. O tal padre falou das injustiças que havia; falou de futebol e daquela história dos prémios dos jogadores que havia uns que nem queriam pagar o IRS. Não estava certo, não senhor, pensava Joaquina, que eles que andavam aos pontapés à bola ganhassem tanto dinheirinho e ainda achavam que não deviam pagar impostos como os outros que mal lhes chegava o ordenado até ao fim do mês e passavam tantas dificuldades. Depois o padre falou ainda, doutro caso injusto, que um jornal de Sintra dera a noticia. O senhor presidente da Câmara de Sintra tinha pensado atribuir um subsidio – Joaquina até nem percebeu bem se eram 20.000€uros ou 20.000 contos, credo tanto dinheiro ! àquele que aparecia muito na TVI, o tal José Castelo-Branco, esse mesmo, só porque o homenzinho tinha feito umas obras lá no seu palacete, pois então. Mas a ideia não foi avante, ainda bem, tanta gente sem casa e sem comer e ele a desperdiçar assim as verbas…
Ao fim, o padre veio pôr-se à saída da porta principal e falava um pouco com todos. Joaquina também foi lá cumprimentá-lo e até se afoitou a dizer-lhe que tinha gostado muito do sermão, sim senhor, que lá na terrinha não havia nada daquelas maneiras, mal acabava a missa cada um ia à sua vida e o padre não ficava a falar com ninguém!


domingo, julho 16, 2006

 

ideal

Não tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vou pôr neste papel a descripção d’um ideal.


A sensibilidade de Malharmé dentro do estilo de Vieira; sonhar como Verlaine no corpo de Horácio, ser Homero ao luar.

Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e táctica, naturalizar-se differente e com todos os documentos; em summa, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquelle caixeiro que de aqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca.

Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher…
Livro do Desassossego - Bernardo Soares /Fernando Pessoa

sábado, julho 15, 2006

 

O mundo numa cadeira

Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada pequeno incidente tem um previlégio de maravilha. Quem nunca sahiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Bemfica, e, se um dia vai a Cintra, sente que viajou até Marte.



O viajante que percorreu toda a terra não encontra de cinco mil milhas em deante novidade, porque encontra só coisas novas; outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o conceito abstracto de novidade ficou no mar com a segunda d’ellas.

Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gosar o espectáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.

O Livro do Desassossego - por Bernardo Soares /Fernando Pessoa


quinta-feira, julho 13, 2006

 

FÉRIAS 2



Rita arrumou as bagagens no carro . A mãe levou-a até à Gare do Oriente onde estavam os amigos à espera, com muitos sorrisos e muita euforia pela perspectiva da partida. “Vai ser tratada que nem uma rainha” – diziam eles – e lavamos a loiça e fazemos o jantar…
E partiram rumo à casa da Avó de um deles para no dia seguinte irem até ao tal Parque de Campismo.

Os Pais de Rita também partiram de férias, sozinhos, sem a filha. Uma experiência nova também para eles, na descoberta de outros lugares, outros laços, outras conversas, outros olhares. Visitaram a família, sim, visitaram locais distantes, que viram com outras cores e deram novos tons aos diálogos e aos gestos. Reencontraram-se na ternura e na cumplicidade dos seus momentos sem pressas, sem horas marcadas. Telefonavam a Rita primeiro com alguma ansiedade, depois com uma certa saudade, com algum entusiasmo porque tudo estava a correr bem, ultrapassadas as primeiras dificuldades de chegar aos locais, montar as tendas, preparar as coisas. Afinal, no dia previsto para o regresso , Rita até pediu se podiam ficar para quinta-feira; sem que ninguém pudesse prever que iria chover a potes e trovejar forte, mas nem esse pequeno contratempo prejudicou aqueles dias…


Depois, já eles vinham de regresso a casa, nessa manhã em que saíam os resultados dos exames do 12º ano, Rita voltou a ligar - abençoados telemóveis. Tinha passado os exames todos com óptimas notas, os colegas também.

Amanhã vão matricular-se na Faculdade!


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